31/05/2017
Devo de inÃcio fazer um rápido esclarecimento no sentido de tentar prevenir um certo maniqueÃsmo que não raro interdita o debate nesta matéria: é evidente que o uso abusivo de drogas revela graves problemas sociais que devem ser enfrentados e que exigem providências das autoridades constituÃdas em diversas frentes, nenhuma delas de fácil resolução, seja no campo da saúde, da assistência social ou da segurança pública.
Também não se pode negar a dura realidade das aglomerações de usuários de substâncias psicoativas, as cracolândias, fenômeno que vem se fazendo a cada dia mais presente nas cidades brasileiras, produto de uma série de fatores que não caberiam neste artigo; contudo, ao mesmo tempo é imperioso reconhecer que os princÃpios norteadores do Estado Democrático de Direito alcançam a população em situação de rua, o que significa que a legalidade deve ser a baliza de todas as ações governamentais em relação à s pessoas que circulam naqueles espaços.
Qualquer atendimento em saúde mental deve necessariamente obedecer à Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos da pessoa com transtorno mental. Fundada na dignidade humana, na liberdade como regra e no atendimento preferencial em meio aberto, a assistência em saúde mental, desde o advento da Lei Antimanicomial, passou a ter como objetivo fundamental a reinserção social do paciente. A atenção em saúde mental, de meramente psiquiátrica, foi ampliada para contemplar o amparo psicossocial do indivÃduo. De objeto antes manejado ao talante de interesses diversos, a pessoa com transtorno mental é agora reconhecida como sujeito, com direitos muito bem definidos; e a internação psiquiátrica, outrora utilizada com objetivos pouco nobres[1], tornou-se dispositivo dos serviços de saúde, de caráter excepcional e utilizado exclusivamente em benefÃcio daquele mesmo sujeito.
O lugar do louco deixou de ser o manicômio para ser a cidade e, para garantir a assistência à saúde mental no território da cidade, devem atuar os dispositivos substitutivos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial ou, simplesmente, RAPS. Por sua vez, a RAPS deve ser estruturada de forma a contemplar uma série de serviços, com destaque para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)[2].
A internação é um recurso terapêutico possÃvel e eventualmente necessário, embora seja excepcional e somente aplicável quando outros recursos extra-hospitalares não se mostrarem aptos para o tratamento, e já não se dá em hospitais psiquiátricos, tampouco em manicômios judiciários; porém, quando imprescindÃvel do ponto de vista clÃnico, deve ser realizada em leitos psiquiátricos de hospitais gerais. A lógica manicomial dá lugar à lógica da inclusão em toda a sua plenitude.
Não há espaço para qualquer exceção no atendimento em saúde mental, de forma que a internação psiquiátrica, seja ela voluntária, involuntária ou compulsória, regular-se-á sempre pelos dispositivos da Lei Antimanicomial.
Se os laços familiares e sociais são frágeis quando presente um transtorno mental severo, a ruptura causada por uma internação, particularmente quando de longa duração, pode simplesmente inviabilizar aquele objetivo maior da reinserção social do indivÃduo, o que explica a opção do legislador pelos recursos extra-hospitalares e pela estruturação de uma rede psicossocial de atendimento que se volte para a assistência do sujeito no território, de maneira a envolver e fortalecer os seus vÃnculos familiares e sociais.
A Lei 10.216 fez do lema do Movimento Antimanicomial um princÃpio normativo orientador de toda a polÃtica de atenção à saúde mental no Brasil. Entretanto, a internação é da mesma forma um dispositivo previsto nessa mesma Lei, o que faz da internação psiquiátrica um recurso terapêutico lÃcito, embora, repita-se, seja de caráter excepcional. Nesta questão delicada não resta dúvida de que a internação deve acontecer preferencialmente de forma voluntária, de sorte que, sempre que possÃvel, será precedida da expressa aquiescência do sujeito que a ela irá se submeter.
O problema é que, não obstante a vigência de mais de dezesseis anos da Lei 10.216, ainda não conseguimos abandonar a cultura manicomial, arraigada que está em práticas centenárias e que, diante da complexidade, dos preconceitos e da desinformação que acompanham o tema da saúde mental, torna muitas vezes sedutora a internação, ideia que é ainda mais difÃcil de superar quando o quadro clÃnico do indivÃduo relaciona-se ao uso abusivo de drogas ou à dependência quÃmica. Em uma especial situação, todavia, há um verdadeiro rolo compressor manicomial que, cego para outras possibilidades, não vê alternativas à internação. Trata-se do quadro de transtorno mental do indivÃduo em situação de rua.
O caso da Cracolândia
O quadro grotesco e caótico da Cracolândia na capital paulista, que nos últimos dias reapareceu em cores vivas e violentas, é acompanhado de um forte coro pela internação forçada de homens e mulheres, farrapos humanos que habitam as ruas do Centro de São Paulo. Como o populismo manicomial é a resposta fácil que traz rápidos dividendos eleitorais, não faltam autoridades públicas, gestores e polÃticos a sustentar uma pretensa necessidade de promover a internação forçada desse grande contingente de seres humanos maltrapilhos e expostos à vulnerabilidade e ao uso abusivo de substâncias psicoativas.
Aquelas autoridades escondem, atrás de seus aparentes gestos de boa vontade, a natureza higienista da internação, utilizada que é não em benefÃcio da saúde dos indivÃduos que sofrem de transtornos os mais diversos, especialmente a dependência quÃmica, pois o grande problema visto pelo populismo manicomial não é o direito à saúde que não chega, mas as ruas da cidade sujas por mulheres e homens indesejáveis[3] que insistem em existir e que, assim, atrapalham o tráfego, praticam delitos e enfeiam a vista de quem anseia por uma cidade linda. Linda para quem!? Os habitantes da Cracolândia são desprovidos da condição de sujeitos da cidade para serem expulsos, o que pede, tal qual na Europa do século XVII, a internação como resposta[4]. A generosidade e a vontade burguesa de por ordem na cidade, assim como acontecia há quatrocentos anos, é mais uma vez a cortina de fumaça para promover a exclusão em massa das populações indesejáveis em pleno século XXI.
Acontece que agora temos lei. E não é sem motivo que a Lei Antimanicomial tem esse nome, pois veio para promover uma transformação radical na forma como vemos e lidamos com a loucura em qualquer de suas manifestações. Temos, pois, regras claras para internar alguém contra sua vontade e, em termos jurÃdicos, a internação psiquiátrica compulsória é distinta da internação involuntária. Mesmo tendo ambas as modalidades de internação uma caracterÃstica comum, uma vez que ambas impõem o regime de internação do indivÃduo contra a sua vontade, a diferenciação no plano jurÃdico traz consequências de grande importância prática.
A primeira das diferenças está na necessidade, no caso da internação compulsória, de uma lei prévia que autorize expressamente a ordem judicial para a internação psiquiátrica. Enquanto a internação involuntária é inteiramente regulada na própria Lei Antimanicomial, a internação compulsória exige a complementação de uma outra lei que permita a internação por ordem do juiz (Lei 10.216, art. 9º)[5].
No direito brasileiro, a tÃtulo de esclarecimento, convém registrar que a internação compulsória só existe no âmbito penal, como medida de segurança (Código Penal, art. 96, inciso I) ou, no processo penal, como alternativa à prisão (Código de Processo Penal, art. 319, inciso VII). Como se pode perceber, diante da regra restritiva do art. 9º da Lei Antimanicomial, não há qualquer base jurÃdica para a internação compulsória das pessoas que circulam pela Cracolândia. Todavia, seria juridicamente possÃvel, em tese, a internação involuntária em algumas situações provavelmente ali presentes.
Analisada em cada caso de forma individualizada e respeitando os direitos do sujeito, notadamente aqueles referidos no art. 2º da Lei Antimanicomial[6], a internação pode ser clinicamente indicada, o que, contudo, exige uma averiguação cuidadosa acerca das condições psicossociais do indivÃduo e, importa aqui ressaltar, pressupõe um trabalho prévio e criterioso por parte da Rede de Atenção Psicossocial. Logo, mesmo diante da possibilidade jurÃdica da internação involuntária, não se faz recomendável o improviso de mutirões para a análise de algo tão delicado quanto o emprego desse recurso terapêutico extremo, caracterizado que é pela privação da liberdade do indivÃduo.
O atendimento feito de forma precária em CAPS montado em um contêiner, sem que se leve em conta o completo diagnóstico psicossocial impossÃvel de se construir em breves anamneses de uma consulta só, não é, portanto, instrumento apto a amparar o emprego daquele recurso terapêutico que deve ser excepcional e só utilizado quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Entretanto, e aqui está uma regra de ouro, indicada a internação por relatório médico circunstanciado sem que haja o consentimento do indivÃduo e não havendo quem por este se manifeste, como exige o art. 6º, inciso II, da Lei 10.216, caberá ao juiz atuar não para impor uma internação, pois não se trata de internação compulsória, mas para garantir o pleno acesso à saúde, inclusive, caso necessário, obrigando o municÃpio ao oferecimento do serviço que muitas vezes é negado por deficiências da própria RAPS. A natureza da internação continua sendo involuntária, o que não muda mesmo quando o juiz é acionado para a garantia do atendimento à pessoa com transtorno mental. E não haveria como ser diferente, pois uma lei que prevê e garante direitos não poderia jamais ser utilizada contra o titular desses mesmos direitos.
A polÃtica higienista que vem sendo praticada pela Prefeitura de São Paulo na Cracolândia constitui-se, portanto, em prática ilegal que deve ser rechaçada pelo Poder Judiciário. Aliás, é exatamente para evitar abusos como os que vêm sendo praticados sob o comando do prefeito João Doria Júnior que temos uma Lei Antimanicomial no Brasil.
Haroldo Caetano é Doutorando em Psicologia (UFF), Mestre em Direito (UFG). Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Goiás.
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