Espaço Institucional e Sóciocultural

COLUNA DO MARCELO FRANCO: Certidão de Objeto e Pé

COLUNA DO MARCELO FRANCO: Certidão de Objeto e Pé

Começo este texto já dando carteirada de profissional do Direito raiz, das antigas, e contrariando o Pacto Nacional pela Linguagem Simples. Formado em 1908, não posso fugir do vício de expressões jurídicas que não se usam mais, obviamente — e já antecipo que não gostei da reforma ortográfica, aquela de 1911; então prefiro, digamos, “asthma” a “asma”, sem contar que nasci, com muita honra, na Província de Goyaz. Pois então: o título aí acima significa uma certidão que se pedia para se saber o objeto de um processo e suas fases detalhadas. E por que uso a provecta expressão? Ora, foi nela em que pensei quando me convidaram para escrever uma coluna, mais os menos regular e mais ou menos de tamanho variado, aqui neste espaço (confesso: “mais ou menos” é interpretação minha para “quinzenal” e “até 1.500 caracteres”). De qualquer modo, depois voltarei ao tema de mostrar objeto e pé de qualquer coisa, inclusive de nossas almas e seus escaninhos escuros. 

Creiam-me: algum dia ainda escreverei um “J’accuse” para denunciar o bullying que venho sofrendo há anos de pessoas que me pedem um “texto qualquer” para publicar na nova revista que lançarão assim… assim que eu escrever o tal texto qualquer, claro está. Bem, admito que este promitente comprometeu-se com textos demais e com dezenas de promissários espalhados Goiás afora; no entanto, há uma turma que age, digamos, como uma espécie de Robert Mitchum em “O Mensageiro do Diabo”, sempre disposta a perseguir inocentes. Alguém me encontra e logo pergunta coisas do tipo “Tem texto novo?”, geralmente com as mãos úmidas de suor sobre os meus ombros. Sem limites, muitos ainda costumam entupir a minha caixa de mensagens com ordens absurdas como “Escreva sobre a ararinha azul” ou “Espero um artigo analisando a crise na Ucrânia”, e também há os emissários que recebo pedindo artigos que nunca prometi (talvez eu tenha afiançado que os escreveria — esta minha memória…). Quando resolvo ceder e remeto aos cobradores algumas mal traçadas, a agrura segue por outra vertente: “O título não está bom”, “Ficou longo”, “Prefere as frases em latim entre aspas ou em itálico?”, numa toada enervante. Não só: publicado qualquer texto meu, poucos minutos depois as demandas recomeçam: “Tem mais?”. O inferno, meu caro Jean-Paul, é “o” outro — ou, dito de outra maneira, esse pessoal que tem o vezo de exigir a execução pontual de obrigações assumidas. Desde quando isso virou moda neste nosso Florão da América, salve, salve?

Não aqui, porém. Chego a este espaço com reverência e feliz. Afinal, enche-me de orgulho escrever para a minha, a nossa AGMP; associação que meu padrinho José Pereira da Costa ajudou a fundar; associação que eu, minha mãe e tantos primos integramos; associação que muitos amigos queridos presidiram. É galardão para se pregar no peito, é elevação de patente e acréscimo curricular que berrarei aos quatro ventos. Sou o Zagallo, assim, desta confraria: vocês terão de engolir os meus textos…

Negociamos o acordo — eu escrevo a tal coluna, ainda que sem muita regularidade e sobre temas vários, a Associação a publica, vocês a leem se nada de mais útil tiverem para fazer. Um bom trato, eu diria. Tudo resolvido e trocados os fios de bigode contratuais, faltava-me o tema desta estreia de hoje. O normal seria apresentar as minhas credenciais; entretanto, o triste fato é que não as tenho tantas assim. “O assunto é livre”, garantiram-me, e ainda sugeriram qualquer coisa como “Foque nos livros que você coleciona e finge ler”. Será? Houston, we have a problem. Ainda assim, não questiono que seja um início. O plano é o seguinte, portanto: a partir de hoje, escreverei uma espécie de coluna sobre as minhas experiências com livros e também filmes, músicas e tudo o mais que Freud afirmava ser necessário para seguirmos ligeiramente saudáveis na vidinha que nos coube, as tais “gratificações substitutivas” e “poderosas diversões” (o terceiro paliativo que nos ajuda neste vale de lágrimas, ensinou o vienense, seriam as “substâncias entorpecentes” — acato a tese e eventualmente também escreverei sobre experiências gastronômicas e etílicas, por assim dizer). O id e o princípio do prazer como tema, eis o meu projeto de fuga. Daí o título do texto e da coluna: os meus onze leitores terão uma certidão de objeto e pé, a cada novo texto, sobre as minhas muitas dúvidas e quase nenhuma certeza. Ah, sim, eu sei, entretanto, o que me aguarda. Dissecarei livros sem jamais ter estudado crítica literária, darei palpites musicais mesmo não sabendo patavina do tema, comentarei filmes a despeito do meu conhecido e divulgado gosto por desenhos animados e séries que entorpecem neurônios. Sim, amigos leitores, estou atacado de húbris intelectual. No susto, concordei com o pacto sem o discutir (e, pretenso polímata que sou, imagino que alguns leitores apontarão o dedo inquisidor contra mim e berrarão “Aposto que você nunca leu Heidegger em alemão” ou “Sei, sei, escrevendo sobre jazz, logo você que gosta mesmo é de forró”. A ver).

Como repassar o que pretendo, contudo, aos meus nove leitores? Houston, we have two problems. A melhor ideia presumivelmente será escrever sobre experiências e tentar transmitir sensações com um décimo do talento, por exemplo, que M.F.K. Fisher, aquela senhora que veio ao mundo para nos humilhar com o seu savoir-faire, tinha para nos guiar nos labirintos da alta gastronomia. E para isso eu talvez tenha um mínimo de pedigree, mesmo tendo negado possuir credenciais bastantes: vivo entre “gratificações substitutivas” há muitos anos. Daí porque, pensei, a melhor forma de me apresentar seria mostrar que me aposentei do mundo e vivo entre livros, com pouca higiene diária e sem muito contato com vós outros, ignaros mortais. Sim, sim, apresento-me e espero sinceramente que não fujam correndo para as montanhas. Não sou moreno alto, bonito e sensual, mas garanto a vocês que leio. Vivo entre livros e papéis e tenho a casa hoje totalmente colonizada por livros — para ler todos, rogo para que exista em mim o gene da longevidade de Matusalém. “Leio, ergo sum” é o meu moto, e a minha baleia branca será sempre o próximo livro a ser lido, sem contar que dei de colecionar livros antigos. Posso não entender o que leio, mas venho tentando. Este é, assumo de peito aberto, o meu único título para a posse deste espaço; sendo único, dividirei com vocês tudo aquilo que entendi errado, li mal, citei fora de contexto e fingi que compreendia. Dê espaço a um leitor inveterado e ele o ocupará — somos opiniáticos. Tossimos e palpitamos sobre pós-estruturalismo, MPB, cinema iraniano, futebol americano, cultura maori… Ocorre que um especialista em tudo é, evidentemente, um especialista em nada — e eis aqui outra aflição. Vejam o meu caso: tenho no Kindle coleções de livros sobre “armas nucleares” e “Bálcãs”, temas absolutamente distantes da minha vida cotidiana (eu sei, eu sei, buscarei tratamento); sou, assim, uma espécie de confirmação da Lei de Rothbard: tendemos a nos especializar naquilo em que somos piores.

E por que narrei tudo isso? Para me credenciar com alguma experiência, mas sem esconder minha mediocridade. E é aqui que reside outro problema (para vocês, meus cinco leitores): eu não quero fugir da mediocridade. Na verdade, quero a abraçar, acarinhar e embalar o seu sono. Para ela, eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier. A alegria de um barco voltando. Passar uma tarde em Itapuã com a mediocridade. Ver a mediocridade na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida. Daí que a sabedoria, se é que ela exista, está em reconhecer a mediocridade certa para contrabalançar todos aqueles concertos a que assistimos e cada Shopenhauer que fingimos ler. Ocorre-me agora: somos até medíocres do tipo “sábios da aldeia” (ficamos no meio-termo) quando optamos pelas mediocridades (coisas ordinárias) certas. Evidentemente, nisso entram gostos personalíssimos. Se toparem, eu contarei os meus, então, transformando os meus futuros textos aqui numa espécie de confessionário. Certidão de objeto e pé, insisto.

Por outro lado (quase me saiu um “doutro giro”…), os italianos criaram uma palavra para a arte de dominar a vida: sprezzatura. Ter sprezzatura é aparentar tranquilidade em tarefas difíceis. Gosto de esticar o conceito, porém: é ainda saber ouvir — e apreciar — Bach, mas também Fagner cantando “Borbulhas de Amor”, por exemplo. E os antigos romanos elogiavam a vida com alguma “mediocridade dourada”, ou “aurea mediocritas” (devo estar errando o conceito, mas vida que segue). De volta a mim agora, como prometido, pois comecei este parágrafo sem me mencionar, um crime hediondo para os meus padrões. Não afirmo que eu tenha dominado a arte da sprezzatura, uma luta diária e que dura toda a nossa vida, mas posso alardear que aprendi alguns truques. Restaurante Michelin e pé-sujo; Shakespeare e novela mexicana; Marcel Proust e romance policial de quinta categoria; ópera e forró; Veuve Clicquot e São João da Barra; Paris e Riachão das Éguas; Van Gogh e Romero Britto… Não, não, peraí, agora exagerei; de qualquer modo, vocês pegaram o espírito da coisa, com certeza: basta olhar com olhos de ver.  Uma saída para o labirinto em que me enfiei, eis o que quero dizer desde o início: sprezzatura, a pouca que tenho, balanceando a minha grande mediocridade. Uma boa receita, o que os meus quatro leitores poderão depois me confirmar.

É isto: creio-me devidamente apresentado. Não nego, sei que pareço ser um tanto doido (“Admito: sou interno de um hospício”, eis um início de livro que aprecio); alego em minha defesa a atenuante de que sofro de uma “loucura mansa”, “a gentle madness”, título de um livro (mais um que cito!) de Nicholas Basbanes, outro envolvido com a colonização livresca. (E Hoolbrook Jackson, mais um doent…, digo, leitor que se debruçou sobre a bibliofilia — o seu “The Anatomy of Bibliomania”, criminosamente ainda não traduzido aqui no Berço Esplêndido, é uma obra-prima —, afirmava que se tratava de uma mania menos perigosa do que a sanidade dos sãos. Confere e confirmo.) Ou talvez não tão mansa: se a biblioteca define o seu dono, depositem-me imediatamente num manicômio. Bem, louco ou não, há estropiados piores do que eu que seguem funcionais — somente no meu edifício, conto um que berra “Vai, Parmêra” da sacada, outro que joga boliche, mais um que desce pelas escadas carregando tralhas de pescaria (pescar e jogar boliche empatando com colecionar selos na categoria “atividades mais chatas já inventadas”, ainda que seja forçoso reconhecer que colecionar selos provavelmente tenha a mesma conotação ritual de juntar livros). Poderia ser pior, respiro aliviado, e filosoficamente recordo que há algo de utópico naquele que aguarda a famosa era do ócio criativo, possivelmente adiada para as calendas, a fim de se dedicar aos livros ainda não lidos; algum respeito, assim, talvez nos seja devido.

Encerro e espero estar (pouco) credenciado para as nossas conversas futuras. À moda de solenidades antigas, peroro, enfim (gosto de palavras estranhas, claro fique): autoridades presentes, minhas senhoras e meus senhores, neste momento solene e auspicioso, declaro, portanto, inaugurada esta coluna. Obrigado! (Espero, agora, revê-los daqui a quinze dias. Ou trinta. Talvez em dois ou três meses… Adiante!)

(Creio ouvir ao longe, como se lê nas anotações feitas em antigas transcrições de debates parlamentares, “fortes apupos e não apoiados”. Faço o pelo-sinal, murmuro um “Senhor, tende piedade de mim” e peço indulgência aos meus três leitores; cautelosamente, contudo — más sabe el diablo por viejo que por diablo —, também azeito os meus trabucos metafóricos para eventuais trocas de chumbo.)